segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Auf wiedersehen

Dificilmente poderiamos ser mais diferentes. Eu de direita, ele de esquerda; eu católico praticante, ele sem Deus nem transcendência; eu pró-vida, ele liberal; eu com 41, ele com 63; eu casado militante, ele solteirão inveterado; eu falador compulsivo, ele calado e reservado.
Partilhamos o mesmo escritório oito horas por dia, durante dezassete anos. De manhã cumprimentavamo-nos invariavelmente em japonês ou em chinês, encerravamos o dia com um sonoro e bem disposto auf wiedersehen.
Pelo meio discutiamos projectos, trocavamos ideias, discordavamos abundantemente e respeitavamo-nos sempre, sem excepção.
Lentamente ficamos amigos. Lentamente, aprendi a apreciar o seu espirito delicado, a admirar a sua inquebrantável verticalidade, a compreender a sua rebelde independência.
Compreendia a amizade que me tinha quando, aqui e ali, se permitia partilhar o orgulho embevecido que sentia com os sucessos do sobrinho, a admiração com que seguia discreto a vida da irmã. Não lhe era fácil esta partilha, mas confiava em mim a esse ponto.
Quando me trazia um livro ou um disco, deixava-o silenciosa e discretamente na minha secretária. Quando eu lhe agradecia, murmurava: pensei que pudesse interessar-lhe...
Era o meu amigo Rui. Partiu hoje, discreto como só ele, com a voz sumida, mas com o espirito indomável, como sempre.
A esta hora acredito que o meu Deus esteja impaciente, confuso, quase a duvidar da sua própria existência, é que o Rui não é para brincadeiras, nem cederá. O Rui recusar-se-á a aceitar, mas estará no sitio dos rectos, dos dignos e dos justos; de lá, olhará pelas suas ovelhas e seguirá a vida dos que sem saberem lhe importam muito.
Vai fazer-me falta.
Como nos bons tempos,
Sayonara Sacramento San!

4 comentários:

Paulo disse...

O Rui,que foi o homem mais livre que conheci, tocou-nos (aos que o conhecemos) de forma definitiva. Felicito-o pelo belíssimo texto que tomei a liberdade de transcrever hoje no Marcas dÁgua.
Um grande abraço

Anónimo disse...

Precisamente. Belíssimo e justo texto!

clara disse...

Obrigada pelo excelente texto, sentido, objectivo,sincero, um retrato fiel do Rui.
Tomei a liberdade de o ler durante o funeral. Todos gostaram muito.
Um abraço,
Clara Sacramento


http://marcadagua-pt.blogspot.com

Miguel Vieira disse...

Este inspirado texto rende-lhe uma sincera e justa homenagem e traduz bem a sua dimensão como Homem. Também eu tive o privilégio de o conhecer. Privilégio não só mas também porque o Sacramento era diferente de todos os que já conheci. E quase sempre nos surpreendia com uma afirmação ou um comportamento que escapava à nossa lógica de comuns mortais. Dir-se ia que vivia em outra dimensão, com os seus valores bem presentes e que para nós olhava com a piedosa superioridade de quem está a olhar para alguém que desconhece uma parte da história . Recordo as suas desconcertantes e originais coreografias numa discoteca após um jantar da empresa. E o que lhe disse um jovem que o seguia com admiração: "quando fôr mais velho quero ser como você".
Sem este Homem ficámos mais sós. Até sempre!