Já passa da meia-noite, mas para mim ainda é dia 4 de Dezembro. A Espuma dos Dias, do Prof. Adriano Moreira, abriu um dos noticiários; sobre Camarate nem uma palavra. O tempo de tudo se encarrega. A urgência dos vários descalabros do presente dirige a atenção, relativiza-nos a memória.
Continuo, ao fim de muitos anos, com Camarate atravessado na garganta. Tive a infelicidade de ter assistido ao anúncio em directo da tragédia, tinhamos ainda televisão a preto e branco, eu tinha doze anos e chorei convulsivamente antes de conseguir chamar os meus pais. Foi a morte de um sonho e doeu mais do que a perda de uma realidade. O atentado marcou o fim de um renascimento português, de um tempo de esperanças e grandes expectativas, da árdua recuperação da dignidade nacional e de um forte compromisso colectivo. O despudor que se seguiu, o encobrimento e a mentira, condenaram-nos ao Portugal pequenino, cinzento e tecnocrático em que vivemos.
Não me ouvem a invocar "o nosso Adelino", com saudades do Palácio de Cristal onde não estive, nem a suspirar por Sá Carneiro. Correndo o risco de chocar muita gente, não acho que pudessem fazer os milagres que alguns garantem que fariam. Viriam a ser criticados, cometeriam erros como toda a gente, atravessariam os periodos de menor popularidade normais em política. Morreram, como Morrisson, Hendrix ou Joplin, no pico, no ponto onde se forjam os mitos. Valem menos por causa disso? Nem um pouco. Ambos continuam a ser um referêncial de inteligência, capacidade e carisma. Ambos, apesar dos calculos que obrigatóriamente fariam, eram homens de risco e coragem. Tudo isso desapareceu da política actual.
A saudade que me fica, a pena que me roi, não é dos grandes feitos governativos que poderiam ter feito, não é atribuir-lhes uma miragem de Portugal-Primeiro Mundo; isso nunca saberemos. O meu luto, como apaixonado da política, é pelo fim das qualidades que antes enunciei, é pela victória do nacional cinzentismo. Com a morte do sonho, Portugal assustou-se, regrediu e refugiou-se na mediocridade dos "valores seguros": Eanes, Cavaco, Sócrates. A política de causas, ideias e valores morreu ali, foi substituida pela aparente seriedade, pelos números e pela obra. Francamente, é muito pouco. É motivo para luto nacional.
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