segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Nós e os outros


Os últimos tempos têm-me obrigado a assídua frequência hospitalar. Sou cliente Médis, mas tenho acompanhado os meus próximos, que o seguro não cobre, no tirocínio dos hospitais públicos. Sim, a Médis é uma companhia fantástica que nos acompanha de bom grado quando temos saúde, dinheiro e juventude, ou seja, quando menos precisamos; falhando a saúde, o dinheiro e a idade avançando, chutam-nos de volta para o público. Business is business. Resta dizer que tenho o tal seguro por ser uma benesse sem custos, no meu caso particular.
Todos os que entram num hospital estão, de alguma forma, fragilizados. Hoje, no pediátrico de Coimbra, tive mais uma abordagem do que é a nossa saúde pública. Um edifício degradadíssimo, enfermarias com crianças a mais, uma estrutura anárquica, desorganizada, meios insuficientes. Só podemos refugiar-nos na competência do factor humano. Nada mais.
Passeando pelos corredores e espreitando as enfermarias, vemos o que não queremos ver, dor, sofrimento, limitação, em muitos casos, uma perturbante ausência de Deus, não posso entendê-la de outra maneira, não há razão possível para o mal estar daquelas crianças. Fraca fé, talvez a minha.
Ali desembocam os meninos de todo o centro e interior do país, nem todos têm a visita dos pais, esperam em camas de ferro na penumbra sem saber o que esperar. A maioria destes meninos não será interessante para as Médis do mundo, pela sua condição de saúde, pela falta de dinheiro. Os hospitais da Luz estão a anos luz. Estes meninos mereciam mais luz nos hospitais a que a vida os obrigou. Mereciam conforto, bem estar e meios; companhia e amor.
Quando pedi uma cama maior para a minha filha, com ar de enfado disseram-me do trabalho que daria arranja-la e apontaram o bom exemplo de um menino de 13 anos que vive encolhido numa cama minúscula, tronco nu imóvel e olhos fixos no tecto.
Foi o dia de hoje, tenho tido muitos assim, em muitos mais hospitais. Sei bem as diferenças entre público e privado. Sei bem quanto nos empurram para o privado; Tão bem, que não posso calar o que sinto.
Quando ouço algum imbecil defender de forma estúpida e criminosa o desinvestimento na saúde pública, quando ouço algum ignorante defender a via preferencial do privado, quando ouço algum cretino dizer que a boa saúde é para quem a pode pagar, percebo que, quem se arroga ao direito exclusivo a melhores médicos, não precisa de mais que um sofrível veterinário.

3 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro, compreendo bem a sua revolta pois passo os meus dias no S. João. A prioridade é o aeroporto, as auto-estradas e o tgv. Uma miséria de país o nosso, não acha?

zé das enguias disse...

Para além de conhecer bem demais a realidade do H. Pediátrico de Coimbra (que tão bem reproduzes), revejo-me integralmente nas palavras e nos sentimentos que resolveste atirar para este texto. Acima de tudo, a falta de respeito pela condição humana é absolutamente chocante, apesar dos milagres que a "competência técnica" vai fazendo. E isso não se ressolve em duas penadas; Sobretudo com os políticos que nos (des)governam.
Abraço.

zé das enguias disse...

Para além de conhecer bem demais a realidade do H. Pediátrico de Coimbra (que tão bem reproduzes), revejo-me integralmente nas palavras e nos sentimentos que resolveste atirar para este texto. Acima de tudo, a falta de respeito pela condição humana é absolutamente chocante, apesar dos milagres que a "competência técnica" vai fazendo. E isso não se ressolve em duas penadas; Sobretudo com os políticos que nos (des)governam.
Abraço.