sexta-feira, 7 de março de 2008

DESUMANIDADE


O P2 de ontem, do jornal Público, é uma retrospectiva dos 18 anos deste Jornal e tem 92 páginas muito curiosas. Deixo, de seguida, o excerto de uma reportagem, premiada, que retrata a forma desumana como os deficientes eram tratados no regime comunista de Ceausescu

"Sexta-feira, dia 8, num Março nevado, por volta das 18 horas: o Camin Spital surge absurdo ao anoitecer. Um prédio antigo, rodeado por uma cerca de arame que o isola de um internato de rapazes. A lama e a cerca estabelecem a divisória entre a normalidade a anormalidade. Entre produtivos e improdutivos para o Estado. A ansiedade de dois dias de viagem leva médicos e enfermeiras portugueses a pedir uma primeira visita lá a cima. O director sabia, porém, uma única frase — estudada previamente — em idioma não romeno: you must be strong — é preciso ser forte. Di-lo com nervosismo e desconfiança, entre baforadas dos cigarros gregos que fuma incessantemente. Está apenas há quinze dias a dirigir o Camin. O seu antecessor — uma mulher — fora afastado. Desviava alimentos e roupa do asilo.( …)Mas, mais que o aviso do director, algo diferente, obsessivo, corporal, intenso, deixara todos de sobreaviso. Logo à entrada do Camin, mesmo antes de se ultrapassar a porta principal. O cheiro. Sobretudo, o cheiro. (...)
Finalmente, o primeiro piso. Um corredor e a porta de um quarto.
Uma enfermeira - nome que dão às empregadas que tratam das crianças – dispõe-se a abri-la .(...) Logo no primeiro passo dado no interior do quarto, o que apetece é o vómito, como se uma barreira viscosa se interpusesse entre nós e aquele espaço de nojo (…). Vislumbram-se dez camas, fracamente iluminada (...) Em cada cama estão três crianças, amontoadas. Em quartos ao lado e no piso superior estão as restantes cem.
Lado a lado, todo o tipo de deficiências, tanto físicas como do foro psiquiátrico. Somando-se males menores que sempre conviveram com estas crianças: a sarna, a tinha, os piolhos, as pulgas, os excrementos, a urina…
Quanto a banhos, as respostas são evasivas. (...) As crianças agitam-se. As que conseguem sair da cama agarram-se, de forma suplicante, num desejo único: subir para o colo.”



1 comentário:

zé das enguias disse...

Realmente P., andamos todos os dias preocupados com tantas insignificâncias e as verdadeiras tragédias todoos os dias não dexam de acontecer, mais ou menos escondidas.
Deixo só aqui algo que já tinha lido acerca deste assunto na Executive Digest, a título de reforço.

"Roménia
Fernanda Andrade

Na primeira visita que fizemos ao Camin Spital de Bilteni, não consegui conter as lágrimas.
Chorei porque as imagens eram demasiado chocantes. Chorei porque me senti impotente perante tanto sofrimento. Depois do choque inicial, a determinação foi mais forte e senti que seria capaz de ultrapassar as dificuldades e fazer algo por aquelas crianças.
No Camin Spital de Bilteni encontravam-se internadas, na altura, 126 crianças e jovens entre os 3 e os 29 anos. Todos apresentavam atrasos psicomotores e a maior parte tinha sido internada com o diagnóstico de encefalopatia crónica infantil e rotulada de «irrecuperável». A maioria dessas crianças e jovens nunca tinha saído da cama. Não sabiam andar, falar, ir à casa de banho, comer sozinhas.
Numa dessas visitas conheci o Hdrea Dimitru. A ficha médica dizia-nos pouco da sua vida. Tinha 23 anos, estava há sete anos internado com o diagnóstico de oligofrenia. Filho de pais incógnitos, foi abandonado aos seis meses e acolhido num dos muitos orfanatos romenos.
Após uma observação sumária, foi detectada atrofia dos membros inferiores e uma suposta paraplegia. Os membros superiores e o tronco apresentavam-se com boa mobilidade e tonicidade. Dizia algumas palavras, era receptivo à nossa presença e colaborava, dentro das suas limitações, no que lhe pedíamos.
Esta parecia ser uma história banal, dentro da muita miséria humana que nos rodeava, mas o que mais me tocou foi o facto de o Dimitru nunca ter saído da cama nos últimos sete anos de vida. Não porque se recusasse, mas porque nunca ninguém se interessou em lhe mostrar que o mundo não se limitava a uma cama e quatro paredes.
Tirar o Dimitru da cama foi uma das nossas apostas, a qual foi possível pôr em prática depois de termos descoberto no sótão, entre os objectos doados, uma cadeira de rodas. A 16 de Março de 1991 levantei o Dimitru e sentei-o na cadeira. Jamais esquecerei a gratidão e alegria que lhe li nos olhos.
A partir desse dia, a sua vida deixou de ser sempre igual. De manhã, quando chegava ao quarto do Dimitru, este cumprimentava-me com um sorriso de orelha a orelha e afastava imediatamente a roupa da cama para eu o levantar. O passeio de cadeira pelo corredor era uma aventura, por vezes arriscada, porque todos gostavam de a empurrar e nem sempre a velocidade moderada era respeitada.
Com a chegada da Primavera, os outros meninos que podiam andar começaram a fazer recreio no pátio do Camin Spital. O Dimitru levava a cadeira para junto da janela e passava horas a olhar para o pátio.
Um dia, com a ajuda dos outros elementos da AMI, descemos com ele dois pisos e levámo-lo também para lá. A sua alegria ainda foi maior.
Mas foi alegria de curta duração. Com a continuidade dos passeios no pátio, os pneus foram-se esvaziando e, como não conseguimos encontrar na aldeia nem nas proximidades uma simples bomba de ar de pressão, a cadeira começou a degradar-se, até que tivemos de deixar de a utilizar.
Quando parti de Bilteni, um mês depois, a cadeira continuava estragada. Penso que os elementos que nos substituíram resolveram o problema. No entanto, ficará para sempre gravada na minha memória a frustração por não conseguir resolver uma situação tão simples como encher dois pneus."