quinta-feira, 26 de março de 2009

A Igreja de Bento XVI



Ainda acerca dos ecos da viagem do Papa a Africa, acho incrível como os media praticamente passaram ao lado das palavras duras e frontais de Bento XVI proferidas na cara de José Eduardo dos Santos, condenando a corrupção, a fome, a violação reiterada dos direitos humanos. A atenção geral centrou-se unicamente na divulgadíssima frase do Papa sobre o preservativo que "agrava" o problema da sida. Não se falou doutra coisa, e na memória de todos o saldo final da visita do Papa a Africa fica por aí.
Não tenho dúvida nenhuma de que o Papa não focou este problema simplesmente porque é contra o preservativo. O Papa focou um problema de comportamento sexual promíscuo ou anárquico, e referia-se á necessidade de alteração de comportamentos, á diminuição drástica do número de parceiros e á monogamia, como sendo os meios eficazes para combater a propagação da sida. Mas, ao exprimir o seu pensamento repetindo apenas o dogma da proibição do preservativo, a escolha das palavras de Bento XVI foi lamentável.

No entanto, também me parece claro que a chuva de críticas de que o Papa foi alvo por causa daquelas palavras não tem origem apenas na proibição do preservativo, antes entronca no problema mais vasto da proibição do uso de todos os métodos anticoncepcionais artificiais determinada pela Igreja Católica. Refiro-me á doutrina "oficial" consagrada no Catecismo da Igreja Católica, e á encíclica Humanae Vitae, que, como é bem sabido, considera moralmente inaceitável e proíbe o recurso pelos casais católicos aos metodos artificiais de regulação dos nascimentos, incluindo a pilula, o preservativo, o DIU, etc.

A meu ver, a raiz de todo aquele alarde pode resumir-se nas palavras certeiras de um activista camaronês: "O Papa vive no céu, mas nós vivemos na terra."

É que, de facto no que concerne á moral sexual, a Igreja Católica fala para o céu, num registo de dogma intransigente, e paralelamente fala para a terra, num registo mais flexível e mais humano.
Por outras palavras: no que concerne p. ex. ao controle da natalidade, a Igreja Católica não tem uma única posição, tem duas:
Por um lado, temos a posição "oficial" da Igreja de Bento XVI que vive e fala para o céu, proibindo inflexivelmente o recurso a todos os métodos contraceptivos artificiais (aos cépticos desta doutrina oficial, recomendo desde já a consulta dos pontos n.º 497, 498, 499 e também n.º 492 do
Catecismo da Igreja Católica ).
E, paralelamente há a outra a Igreja "da terra" que, pela voz de sacerdotes católicos, sérios e empenhados, aprova indubitavelmente e sem problemas o recurso pelos casais á pilula ou ao presevativo como método para regular e espaçar os nascimento . Esta Igreja "da terra", feita nas paróquias e nos Movimentos católicos, como as ENS e os CVX, não nos prega a "abstinência", mas sim o sentido de responsabilidade numa vida sexual correctamente assumida.

É nas divergências entre a Igreja do céu e a Igreja da terra que está a questão.
Note-se que não se trata apenas uma diferença de grau, porque há situações em que há uma oposição evidente.

Além disso, as divergências entre a Igreja do Céu e a Igreja da terra não se resumem á contracepção, são bem mais vastas. Há muitas outras situações da vida em que a Igreja de Bento XVI diz "NÃO" e a Igreja "da terra" diz "sim".

Tal é o que acontece a propósito do recurso á procriação medicamente assistida (PMA) por casais inférteis. Recentemente o Vaticano emitiu o documento Dignitas Personae que proíbe totalmente, seja em que circunstâncias for e sem excepções, o recurso a técnicas de PMA que impliquem a fertilização in vitro, fora do corpo da mulher. Pois a Igreja "da terra" pela voz de sacerdotes católicos (jesuítas e dominicanos, que auscultei) consente aos casais inferteis o recurso á fertilização in vitro, recomendando somente a redução do numero de embriões, no sentido de evitar os excedentários.

Também a situação dos divorciados recasados obrigatoriamente arredados da comunhão e dos sacramentos é fonte de controvérsia entre a Igreja "do céu" e a Igreja "da terra": vide as 2 excelentes crónicas de Frei Bento Domingues o.p. no Público, nos dois ultimos Domingos.

Sobretudo, o que mais choca é que a a Igreja de Bento XVI centra o seu discurso na defesa intransigente do dogma e da tradição, e transmite uma imagem de Igreja intolerante, desligada dos problemas quotidianos das pessoas do nosso tempo. Pior, de uma Igreja afastada do ser humano, e até insensível ao sofrimento humano associado a algumas das situações referidas, quando o pilar do cristianismo é o amor, a caridade, e a compreensão do humano.

Por isso, a única conclusão possível para estas minhas reflexões é pedir ao Papa que desça do céu e venha á terra, e á Igreja da terra. Peço ao Papa que desça ao encontro de todos os casais católicos que (e são a maioria) recorrem á contracepção, á pilula, ao preservativo, venha ao encontro dos casais inférteis que querem ter filhos biológicos e procuram a PMA, e que não afaste dos sacramentos os divorciados recasados e tantos outros filhos de Deus aturdidos e aflitos que procuram a Igreja com os problemas da terra, porque não vivem no céu.

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