quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Especiais


Tenho habitualmente as maiores dúvidas sobre a exposição pública da vida privada e familiar. A linha de fronteira é muito ténue e exige grande discernimento dos vários intervenientes.
David Cameron optou por uma vida familiar transparente, tal como Obama está agora a fazer, e, no dia de hoje, eu, o céptico, digo: ainda bem!
Cameron e a sua mulher Samantha tiveram há seis anos um filho, Ivan, a quem foi diagnosticado na segunda semana de vida um grave problema cerebral seguido de uma violenta epilepsia - o síndrome de Otahara.
O Ivan partiu na semana passada, deixando uma profunda dor nos seus pais, familiares e amigos. O parlamento parou, a classe política e o público juntaram-se à dor dos Cameron.
Não pude deixar de parar e atentar neste fenómeno, que está longe de ser novo para mim. De repente, os olhos do mundo descobriram o poder e o profundo significado da curta vida de Ivan.
David Cameron é um ex-aluno de Eton e de Oxford, líder dos Tories; Samantha é filha de viscondes, criada para lhes suceder. Ambos traziam na bagagem a carga de mal-entendidos que as supostas classes dominantes vão acumulando. Sem querer menorizá-los, não seria difícil imaginá-los entre os que estupidamente têm como bíblia a competitividade, como praxis a segregação, como modelo a lei do mais forte. Felizmente, tiveram o Ivan que lhes mostrou a verdadeira essência da vida.
Ao passarem noites a dormir no chão de hospitais públicos, ao dependerem do apoio dos serviços sociais, ao terem escolhido viver a diferença como quaisquer outros pais, o ex-etonian e a aristocrata mudaram radicalmente a sua percepção do mundo e, mais importante, dos outros.
O legado mais importante da vida de Ivan não é mensurável, é a enorme benção que o pai tão bem descreve: “He is a magical child with a magical smile that can make me feel like the happiest father in the world, we adore him in ways that you will never love anybody else, because we feel so protective.”
Mas, através dos seus pais, o pequeno Ivan marcará a vida de milhões. A ele se deverá, se o pai chegar a primeiro-ministro, a salvaguarda e investimento no NHS (serviço público de saúde britânico), a defesa e reforço dos serviços públicos de apoio aos mais desprotegidos e, acima de tudo, uma mundividência sensível e alargada, justa e integradora.
Como se vê, Cameron é mais do que o original "vote blue, go green", é um homem que a vida se encarregou de preparar para lidar com os outros.
Aconteceu o mesmo com De Gaulle, que terá aprofundado a sua dimensão humana através do amor e devoção que sempre dedicou a Anne, a sua "petite fille" que padecia de Down. De Gaulle foi sepultado em Colombey-les-Deux-Eglises, por sua vontade, junto a Anne e renunciando à suposta honraria da companhia dos outros grandes de França.
Terei uma visão muito particular destes acontecimentos; longe do papel que estes homens tiveram e têm no mundo, também a minha vida mudou. Mudou o conceito de fraco e de forte, de importante e de irrelevante, de urgente e de negligenciável. Mudou a diferença que faz uma mão desconhecida que nos é generosamente oferecida quando nos encontramos frágeis e vulneráveis a 8.000 kilometros de casa. Mudou a forma como encaramos os outros, as diferenças, o sentido que faz sermos acolhedores e tolerantes, a estupidez que é julgarmos os outros à sombra de qualquer pretensa superioridade. Fiquei com a certeza de que lutarei sempre por um mundo em que ninguém seja descriminado ou deixado para trás.
Os meus amigos dizem-me repetidamente que cada dia pareço mais de esquerda; eu respondo que me prefiro pensar da nova direita, que nunca serei de esquerda, mais não seja, pela defesa intransigente que faço da vida, pela presença inspiradora de Deus que encontro em todos patamares da existência com a maior naturalidade.
No Brasil, amor recente e improvável, fui apreendendo a visão e a palavra que me faziam falta. Do porteiro do hotel, ao barman, à moça na rua, ao conhecimeto casual, há só uma palavra: Especial.
Disse-me uma vez um motorista a caminho de uma noite de samba na Lapa: "Cara, cê nem sabe a sorte que tem! Eu também tenho lá em casa uma menina especial, a MINHA princesinha, razão da minha vida! Puxa vida, eles são benção de Deus Nosso Senhor! Cê não sente isso?"

Sinto, claro que sinto. São realmente especiais.



Vale a pena ler sobre os Cameron aqui e aqui.

1 comentário:

Miguel Vieira disse...

Bravo! Não há dúvida que estamos também na presença de um escritor especial! Ideias claras, coragem na abordagem da realidade, um sentir maturado pelas dificuldades que a vida lhe fez enfrentar, enfim, que diferença em relação à vulgaridade que vemos no geral à nossa volta... Obrigado por nos ajudar a abrir os olhos!